3º dia, 4. Abril.2010, domingo de Páscoa

A alvorada foi mais cedo, seis horas e trinta da manhã, porque o dia ia ser longo, em marcha lenta, nas pistas de montanha, atravessando o Atlas. Estavam previstos 380 quilómetros e oito horas e meia de condução.

O Ali, que nos foi apresentado como um simples guia, surpreendeu todos pelo seu bom carácter e formação pessoal. Presença muito agradável, sempre disponível, culto e poliglota, gostava de falar português para ficar mais fluente na nossa língua. Ensinou-nos generalidades da história e cultura do seu país e nós partilhámos também com ele aspectos do nosso património pessoal e cultural. Informou, entre muitas coisas, que a parte esquerda do corpo, de acordo com o Alcorão, significa Satanás e só é utilizada em actividades menores. Foi necessário falar-lhe um pouco da dominância cerebral e de como é antinatural e contraproducente contrariar os esquerdinos, o que parece que os marroquinos desconhecem e, os que têm conhecimento, pouco podem fazer porque o livro sagrado do islamismo é lei para os muçulmanos.

Seguimos por Khénifra a caminho do Médio Atlas. A vista das montanhas do Atlas denuncia a imensidão do país. Continua o verde por todo o lado nos montes e vales e, agora, nos extensos planaltos, alguns albergando grandes lagoas a 1800 metros de altura.

À medida que rumamos para sul, a paisagem vai ficando mais agreste, com escarpas e desfiladeiros, muita pedra e poucas árvores e arbustos. A terra é mais árida e seca, mas no cume das montanhas ainda se vê neve e, nos vales, a água ziguezagueia no leito dos rios dando corpo a pequenos riachos.

As casas são cada vez mais pobres, quatro paredes de adobe, pedra e paus, as montanhas cada vez mais imponentes e desprovidas de vegetação. Continuamos a subir serpenteando, quase não se vêem vestígios humanos, nem sequer pastores nómadas. Parámos para a foto de toda a coluna, numa paisagem imponente, a cerca de 3200 metros.

No cume de uma montanha próximo de Imilchil, aos 2400 metros, surge um grande lago, Tislit. Entrámos numa picada, a paisagem é quase lunar, no meio do nada um casebre, mais à frente três crianças. Depois só nós, muito pó e muito vento. Parámos numa segunda lagoa, Iseli, e regressámos à primeira para almoçar, mais simpática por estar rodeada de algumas árvores. O vento que se fazia sentir, mesmo abrigados pelos jipes, apressou o almoço.

Atravessámos o Médio Atlas e sentimo-nos pequenos perante a vista fabulosa a lembrar o grande “Canyon” nos EUA, salvo as devidas proporções. Enquanto uns regalavam a vista e fotografavam o momento, outros aproveitavam para fazer uma caminhada pela estrada ou para tocar na neve que teimava em manter-se agarrada ao cume das montanhas. O insurrecto alentejano quis ter a experiência de correr àquela altura e naquele sítio inesperado e apanhámo-lo depois pelo caminho.

O alcatrão há muito ficara para trás, as aldeias, paupérrimas, quase não se descortinavam nas montanhas devido às suas construções muito simples, com pequenos orifícios a servir de janelas, e do mesmo material e cor envolventes, completamente integradas na paisagem. As crianças, ensinadas a pedir desde os primeiros anos de vida, erguiam as mãos, num misto de aceno e pedido para parar, atravessavam-se na estrada, faziam piruetas, corriam ao nosso lado, batiam nos jipes, para que lhes déssemos qualquer coisa. Não resistimos e ofertámos bolos, bolachas, amêndoas, bolas e bonés, em andamento. O pó estava por todo o lado e as formas quase não se distinguiam, a cor era sempre a mesma, terracota.

Nos vales, as aldeias surgiam próximo de cursos de água e de pequenos nichos de áreas de cultivo, quebrando a monotonia cromática.

No percurso descendente, a luz vermelha dos travões do Terrano acendeu-se, pelo que tivemos que descer as montanhas muito lentamente, com as redutoras, e fomos alcançados por outra coluna de jipes portugueses, de Oeiras, cerca de dez. Formámos então, durante alguns quilómetros, uma caravana majestosa. Veio mais tarde a concluir-se que o problema não era nos travões, mas apenas eléctrico.

O resto do caminho foi feito de noite, até Boumalne Dadès. Ficámos no Hotel Kashbad de la Vallé. Jantámos sopa de tomate e outros legumes, “tajine” de frango com legumes em açafrão, salada e bolinhos de baunilha. Depois fomos ao bar do hotel onde encontrámos turistas animados de várias partes do mundo, inclusive orientais, ouvir um grupo tocar os tambores tradicionais e beber chá verde com menta.

Os quartos eram muito agradáveis, ouviu-se o rio a correr toda a noite e, de manhã, pudemos observar, da espaçosa varanda de cada quarto, que estávamos num estreito vale, entalado entre montanhas de pedra, onde só cabia o longilíneo hotel, a estrada e o rio.

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