7º dia, 8.Abril, quinta-feira

O “chefe”, entenda-se o Rui Guarda, elemento fulcral na organização desta expedição, marcou o pequeno-almoço para mais tarde, oito e meia da manhã. Além de podermos descansar mais um pouco que nos dias anteriores, tivemos algum tempo para ocupar o nosso T1, com uma salinha tipicamente marroquina, sofás ao nível do chão e decoração em cores muito garridas, e para sacudir ténis, sacos de bagagem e demais tralha, toda conspurcada com o fino pó clandestino, no avantajado terraço individual, com uma vista surreal para o deserto.

Depois do habitual exercício de carregamento de todos os haveres, partimos para o centro da cidade de Zagora, a cerca de 40 quilómetros, para efectuar a manutenção dos jipes numa oficina com um historial interessante, a crer nas fotografias e autocolantes que forravam as paredes, adquirido quando o Dakar se realizava por estas bandas. Até na oficina, a uma temperatura de 32 graus, nos ofereceram chá quente, sempre num bule de metal e servido em copos de vidro, num cantinho miserável, mas onde nos podíamos sentar e resguardar do sol e do calor.

Um grupo de crianças aproximou-se e algumas foram tecendo figurinhas, como camelos, entrelaçando tiras de folha de palmeira, para nos oferecerem, “un cadeau”, e nós retribuimos com dirhans ou doces.

Foram executados, em tempo recorde, comprovando o profissionalismo dos mecânicos marroquinos envolvidos, e a baixo custo, trabalhos como o ajuste da pressão dos pneus e mudanças do filtro de ar, dos foles de transmissão e do pneu rebentado no dia anterior, além da colocação de amortecedores novos levados de Portugal.

Enquanto a operação decorria, alguns dos aventureiros foram passear pela cidade e fazer compras ou, simplesmente, sentar-se nas esplanadas mais próximas para tomar uma bebida fresca ou um café e observar o quotidiano dos transeuntes.

Como a manutenção dos jipes ocupou toda a manhã, assim que terminou iniciámos a jornada de 180 quilómetros até Ait-Benhaddou, onde era fundamental chegar de dia para ver a cidade antiga, classificada como património mundial pela Unesco em 1987. Pelo caminho, em estrada asfaltada com muitas curvas e contracurvas, os vales verdes alternavam com as ocres serras estéreis. Atravessámos a cidade de Quarzazate onde se situam o Musée du Cinema e os “CLA Studios” envolvidos em filmes rodados em Marrocos, como “Lawrence da Arábia”, “Gladiador”, “Cleópatra”, “A Múmia”, “Alexandre, o Grande” ou “Babel”. A temperatura atingiu os 35 graus.

Chegámos ao “Complexe Touristique Le Kasbah”, onde iríamos pernoitar, e optámos por um ligeiro almoço volante junto ao hotel, eram dezassete horas, para logo nos embrenharmos na cidade antiga. Ait-Benhaddou é uma cidade fortificada, ou ksar, na antiga rota de caravanas entre o Saara e Marraquexe, e situa-se numa colina à beira do rio Quarzazate. A cidade é constituída por muralhas ou fortalezas, kasbahs, que fazem corpo com as casas, cuja razão histórica se relacionava com a necessidade de protecção contra os ataques dos nómadas. A maioria dos habitantes da cidade vive agora numa aldeia mais moderna, no outro lado do rio, onde se situa o hotel. Este ksar serviu de cenário para a maior parte dos filmes famosos já referidos.

Percorremos uma rua com comércio tradicional, nas imediações do hotel, que desce até ao rio. O nível de água era baixo e a passagem foi feita caminhando sobre sacos cheios de pedra, harmoniosamente distribuídos, mas quem desejasse podia arregaçar as calças e cruzar o rio a pé. Depois de pagar um bilhete de 10 dirhans por pessoa (1 euro), entrámos no velho povoado onde ainda habitam algumas famílias, que vivem basicamente do turismo. Os edifícios, alguns restaurados outros ainda em ruínas, são construídos com tijolos de barro, têm vários andares e as torres são invariavelmente decoradas com motivos geométricos. A construção é labiríntica, com caminhos ascendentes/descendentes e escadas por todos os lados, becos, zonas obscuras e divisões interiores, alguns estábulos, ainda com animais, e muitas varandas e terraços que servem de miradouros. Meia dúzia de casas estão transformadas em pequeníssimos espaços comerciais e de restauração, muito rudimentares. Em dois ou três locais há artistas a pintar e vender aguarelas de pigmentos naturais, nomeadamente, índigo para o azul, açafrão para o amarelo e chá com açúcar, que é queimado depois de pintado, passando uma chama por baixo do papel, para tomar a cor castanha.

Fomos subindo e explorando a cidade e, quando chegámos ao topo do monte, a paisagem desenrolava-se por 360 graus, deserto até ao horizonte, com relevo marcado por sucessivas elevações e, a ladear o rio e serpenteando com ele, duas margens verdejantes a descontinuar a cromática predominante. Apetecia ficar ali, num tempo perdido, a contemplar aquela obra-prima da natureza.

Tivemos a oportunidade de assistir a um apontamento musical, por parte de um grupo acompanhado por instrumentos tradicionais, e ao ritual de comemoração do nascimento de uma criança, de uma das famílias que teimam em não abandonar este pequeno tesouro. As mulheres da família, vindas de várias partes do país, encontravam-se reunidas numa sala de uma das casas habitadas, onde se apresentavam alguns doces tradicionais, e entoavam cânticos ao sabor da precursão. As mulheres do nosso grupo puderam participar nesta festividade, o que vem comprovar, uma vez mais, a simpática receptividade e hospitalidade do povo berbere.

De regresso ao hotel, ocupámos os nossos quartos. Mobiliário e portas estavam decorados com pintura artística, predominando o vermelho, que aparecia também no tecto. Ao jantar comemos sopa de legumes, omeleta com tomate e tajine de vaca, muito semelhante à nossa jardineira, em pequenas mesas redondas que nos davam pelo joelho.

0 comentários: